quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Determinação

- Então, o que você vai fazer agora?

O dia estava nascendo. Estavam no terraço no prédio. Talvez um termo que definiria bem o modo de vida daquele grupo seria algo próximo de Neo-beatnicks. Johnny já havia cansado de vomitar e agora estava deitado inerte num canto. Haviam passado as últimas 2 ou 3 horas no apartamento discutindo assuntos esdrúxulos, criando teorias psicodélicas e estranhamente lúcidas, ou mesmo relembrando bons e velhos momentos, tudo isso acompanhado por um litro de Uísque vagabundo (que encontrava-se agora aos pés de Johnny) e muitos maços de cigarros. Antes disso estavam em um pequena apresentação de bandas num ferro velho. O maior destaque foi um grupo amador realizando um peculiar cover de Throbbing Gristle. Porém, fora algo como uma noite de despedida daquele lugar imundo, pelo menos para William.

Ele sabia que a resposta que desse àquela pergunta mudaria o rumo de toda sua vida. Afinal, todo ser humano que se preze já passou por essa sensação única de ter que fazer grandes escolhas.

- Eu quero ir embora daqui. – Respondeu em meio a uma tragada.

- Mas e sua família, Will? - Insistiu Rebecca.

- Eles que se fodam.

Bom, acredito que cabe aqui algumas considerações antes que comecem a acusar o jovem William de imoral, insensível ou coisas do gênero. Ele tinha lá seus dezessete anos, isso numa escala temporal linear tendo como referência o dia de seu nascimento, pois sua infância nada fácil o obrigara a amadurecer muitas décadas em poucos anos. Mas não pense que refiro-me ao amadurecimento intelectual proporcionado pelos livros ou pelo contato com a avalanche de informações da internet - famosas por terem a profundidade de um pires - tudo bem que eles tiveram uma contribuição parcial, mas o crucial mesmo foi aquele amadurecimento de vida com base em experiências reais, empíricas. Infelizmente aprendidas da pior maneira possível: através dos erros.

Livros...sim, ele era um cara que devorava livros desde os 12 anos. Começou com um livro qualquer de relevância duvidosa e desde então jamais largou o vício. Isso tudo contrastava com seu estilo rebelde e sujo, pois era magrelo e costumava se vestir de preto, jeans surrado e jaquetas de couro falso, adquirindo um estranho ar de “Bad Boy”, o que nada mais era que uma tentativa de camuflar uma alta erudição e um pertencimento inescapável à "Nerd-kind".

Agora você deve se perguntar, como diabos é justificável tamanho descaso com sua família? Bem, não era exatamente um descaso. William se importava muito com seus pais, inclusive sacrificara boa parte de sua adolescência trabalhando para pagar dívidas, sem nunca receber ao menos um ‘Obrigado’. Porém, um ato de tamanha nobreza não era compatível com a imagem indiferente que ele tanto buscava expressar – contudo não seria incorreto dizer que seus progenitores, durante muito tempo sua razão de existência, tornaram-se há tempos um fardo.

- Estou morrendo aqui Becca... - pode aparentar que a frase tenha sido dita. Não se engane, ela foi soluçada. Era difícil dizer se a razão de seus olhos vermelhos e inchados era a ressaca, a privação prolongada de sono ou a profunda amargura de um esgotamento emocional que já se estendia por meses. - Não posso continuar aqui, e você sabe disso.

Rebecca sabia. Conhecia bem seu amigo, e não se surpreendia com seu sarcasmo, egoísmo e indiferença, afinal ela tinha aqueles olhos especiais característicos dos bons amigos, capazes de ver além da máscara social. Ela o conhecia bem, e sabia que ele se importava com sua família. Tanto é que a recente internação de seus pais num asilo, por mais doloroso que fosse para Will, o libertou dos grilhões da responsabilidade, abrindo uma porta para fora daquela cidade.

- Por que não vem para a faculdade conosco? - Insistiu.

- Não posso. - Isso bastava para expressar seu ódio daquela constipação acadêmica, que mais era um nicho de hipocrisia e cenário para o funcionamento da engenharia social, com suas engrenagens de fofoca, do que um lugar de produção de conhecimento científico. Afinal, a partir do momento em que se reúnem 3 humanos ou mais, dois sempre irão conspirar contra um terceiro (principalmente se forem estudantes universitários).

- Entenda Becca, preciso tentar! É o meu sonho!

Isso era verdade. Ele sempre soube onde queria estar, e sabia que nada mais traria paz ao seu espírito. A paz interna, dádiva concedida apenas àqueles que vão em busca do que acreditam. Ele leu aquilo num livro de psicanálise uma vez...não importa se você não conseguir alcançar seu objetivo, o mais importante é você canalizar suas energias para a jornada, para a tentativa. A expressão da vontade muitas vezes é mais importante que suas conseqüências. Entenda, isso não quer dizer que ele desistiria fácil, muito pelo contrário...todos nós sabemos quando chegamos ao nosso limite, quando nossa busca se torna insuportável, e nos damos conta que nossos sonhos são inalcançáveis...Quando esse dia chegasse para William, esse seria o dia de sua morte.

"Take what you love, and make it your life".

No fundo, todos sabemos o que realmente queremos, porém são poucos aqueles que superam o comodismo e se aventuram nessa empreitada incerta repleta de caminhos tortuosos, barreiras aparentemente intransponíveis e sacrifícios que custam uma parte da alma para serem feitos. Existem alguns fatores que contribuem para o início de uma história, que tiram bruscamente das pessoas o controle sobre suas vidas, obrigando-as a fazerem escolhas que jamais fariam na segurança inerte do cotidiano.

William superou o comodismo quebrando uma barreira enorme, e não hesitaria em quebrar outras. Nada podia ser feito, a decisão já fora tomada. Ele iria para a Metrópole. E ele iria levar sua máquina de escrever.

- Adeus Becca...

Uma última olhada ao pobre Johnny - que a essa altura já roncava profundamente. Jogou uma última bituca de cigarro de cima do prédio. Nesse ato insignificante repousava um curioso detalhe, pois se você olhasse atentamente, veria que William tinha as unhas sujas. Sujas não com tabaco, mas com o que parecia ser terra... afinal, é comum sujar as unhas quando cavamos buracos, ainda mais se esses buracos forem covas para nossos próprios pais!

Caso alguém reparasse nesse pequeno detalhe perceberia que não existia asilo algum. E perceberia também que aqueles olhos vermelhos e inchados não eram ressaca, nem sono, nem tristeza. Eram olhos de alguém perturbado por cometer uma das piores bestialidades demoníacas e imperdoáveis. Eram olhos de culpa.

****

Rebecca ainda estava observando quando ele entrou em seu Chevette e saiu barberando até virar na esquina. Começou a se perguntar se a vida que estava levando era realmente o que ela queria... e até onde seria capaz de ir para concretizar seus próprios sonhos.


ONE

3 comentários:

  1. Muito bom texto, Marcelo! Lembrou-me um pouco do estilo 'Noir' das narrativas cinematográficas de meados do século passado, as quais influenciaram/também foram influenciadas pela literatura do período, e pelo expressionismo.
    Com a licença, faço minha a palavra do comentário anterior: Bravo!
    Márcio.

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  2. A idéia era criar uma atmosfera meio beat à lá Kerouac, misturado com uma ambientação meio cyberpunk da ficção científica (Blade Runner). E como esta foi fortemente influenciada pelo Noir...acho que você tem razão, deve estar ali em algum lugar.

    há!

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